Advogado João Paulo Filippin analisa proibições de venda em marketplaces que, segundo ele, têm suscitado questões sobre o poder de mercado das plataformas mais fortes
Embora a pergunta possa parecer simples, requer uma análise minuciosa dos dispositivos legais para respondê-la. As proibições de venda em plataformas de comércio online têm suscitado questões sobre o poder de mercado das plataformas mais fortes. Isso ocorre porque cada vez mais consumidores utilizam essas plataformas para pesquisar e adquirir produtos, e cada vez mais pequenas empresas utilizam essa via para se estabelecer no mercado, graças aos custos reduzidos de entrada, especialmente nos marketplaces.
Os marketplaces são uma modalidade de plataforma de vendas online, onde diversas marcas são concentradas em um único site, permitindo aos vendedores ofertarem seus produtos a potenciais consumidores. Não vamos entrar aqui na explanação das várias formas de atuação dessas plataformas, pois é sabido que algumas participam mais ativamente das operações entre os consumidores e os fornecedores que negociam ou se aproximam dentro do ambiente virtual disponibilizado.
A questão central deste artigo consiste em compreender se esses vendedores têm o direito de comercializar qualquer marca ou se podem haver restrições impostas pelo fabricante. Exemplificando (baseado em fatos reais): imaginemos um fabricante de suplementos alimentares, com alto valor agregado, destinado a um público nichado e o fabricante é tido como uma marca de luxo no mercado; a venda dos produtos ocorre preponderantemente por meio do seu site e de seus revendedores próprios, pois nenhuma venda ocorre sem uma consultoria, uma orientação ao comprador.
Entretanto, o fabricante vê que seus produtos (originais) estão sendo vendidos por algumas pessoas em vários sites, com preços atrativos (por vezes para abrir mercado, servir de chamariz etc) e sem a entrega de consultoria, por evidente, em um “lugar” onde o público majoritariamente cliente desta marca não iria adquirir o produto. Pode o fabricante se insurgir contra a plataforma para impedir a comercialização dos seus produtos naquele canal?
Entendemos que não há impedimento para o fabricante impor uma política de venda, com regras bem definidas da “distribuição seletiva” (selective distribution) para os seus revendedores ou distribuidores. A questão ganha contornos mais complicados quando terceiros passam a comprar produtos do fabricante ou revendedores oficiais e revender em marketplaces de todo tipo, com condutas comerciais que atentem contra a marca do fabricante.
Intuitivamente, pode parecer que essa proibição seja algo que atente contra o livre mercado. Porém, há situações específicas em que direitos de marca, reputação do fabricante, possam estar sendo maculados com a prática comercial agressiva em determinado marketplace. Na União Europeia, o assunto está um pouco mais evoluído, e há alguns casos interessantes para estudo, entre eles o denominado caso “Coty”.
O caso da empresa “Coty” (produtos de beleza, entre outros) envolveu uma cláusula de proibição de utilização visível de empresas terceiras ao sistema de distribuição seletiva para proceder à distribuição através da Internet, de produtos cosméticos de luxo. A decisão do caso foi muito aguardada e o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) determinou que acordos que constituam um sistema de distribuição seletiva devem ser considerados, à falta de uma justificação objetiva, como restrições por objeto. Além disso, o TJUE determinou que a manutenção de uma imagem prestigiosa não era uma justificação legítima para restringir a concorrência.
No Brasil, poucos são os casos que foram ao judiciário. Mas um deles, que serve de estudo de caso, envolveu a marca SORALI e o Mercado Livre, versando sobre a distribuição não autorizada de produtos pela plataforma de comércio.
A SORALI ajuizou ação contra a plataforma MercadoLivre alegando que esta estava viabilizando a venda não autorizada de seus produtos, prejudicando contratos de distribuição já estabelecidos com diversos distribuidores. O litígio levantou questões cruciais sobre os direitos do fabricante, a exaustão de direitos e a liberdade de comércio na internet.
A SORALI invocou o artigo 710 do CC que permite a celebração de contratos de distribuição exclusiva entre fabricantes e distribuidores. Este tipo de acordo concede ao fabricante o controle sobre quem pode vender seus produtos em uma determinada região. No entanto, a proteção dos direitos do fabricante vai além. A Lei de Propriedade Industrial nº 9.279/96 garante ao titular do registro o direito de uso exclusivo em todo o território nacional.
Entretanto, o ponto principal da discussão envolveu o princípio do “exaurimento da marca”, que está refletido no art. 132 da Lei nº 9.279/96, sendo trazido pela defesa e acatado pela Justiça de São Paulo. Esse princípio estabelece que, após a introdução legal de um produto no mercado, o direito do titular da marca de controlar sua circulação se esgota. Em outras palavras, o fabricante não pode impedir a venda subsequente de um produto que já foi devidamente introduzido no mercado, seja por ele ou por terceiros com seu consentimento.
A plataforma Mercado Livre argumentou também que ela é apenas um meio para a veiculação de anúncios na internet e não é responsável pela criação dos anúncios ou pelo conteúdo disponibilizado pelos usuários.
A decisão final pelo TJSP foi no sentido de que a plataforma não poderia ser compelida a fiscalizar pessoas e empresas com intuito de revender determinado produto adquirido licitamente. Foi consignado na decisão que o “art. 132 (Lei de Propriedade Industrial) da referida lei veda, entre outras situações, que o titular da marca impeça a promoção e comercialização do produto juntamente com os sinais distintivos dela pelos comerciantes e distribuidores do produto. O mesmo dispositivo legal obsta, ainda, que o titular impeça a livre circulação do produto colocado no mercado interno, por si ou por outrem com seu consentimento”.
A decisão refletiu na importância de equilibrar os interesses dos fabricantes com a liberdade de comércio na internet, ilustrando a complexidade das questões legais relacionadas à venda de produtos em plataformas eletrônicas.
Em desfecho: a) é importante que o fabricante tenha uma política de vendas e de “distribuição seletiva” bem definidas para a sua cadeia de distribuidores; b) com relação a terceiros diversos, a proibição de veiculação de produtos em determinado canal de vendas é algo que deve ser analisado caso a caso, e que somente diante de particularidades bem nítidas de violação da marca, da reputação no mercado, é que será possível alcançar alguma ordem impeditiva.