Para Juliana Trece, inflação elevada e dívidas são fatores que desafiam o consumo
Responsável pelo Monitor do PIB-FGV avalia que falta base sustentável para manter atual desempenho da economia
Juliana Trece diz que espera um 2023 difícil independentemente do resultado das eleições
Lucas Torres
No início de setembro, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE) divulgou dados demonstrando que a economia brasileira superou boa parte das expectativas no primeiro semestre de 2022. No período, o Produto Interno Bruto da nação atingiu alta de 2,5%.
Tais resultados geraram sensações mistas entre diferentes correntes de analistas econômicos e conjunturais do país. De um lado, aqueles que pediam cautela – contextualizando os números gerais com a forte dependência dos setores de serviço e consumo expostas pelo relatório completo, e a relação que este cenário tem com medidas consideradas artificiais de estímulo à economia. Do outro, segmentos mais otimistas que apontam para uma tendência de melhora contínua – passadas as turbulências causadas pela pandemia da covid-19.
A fim de destrinchar, com dados concretos, o atual cenário e oferecer uma perspectiva real aos empresários do aftermarket automotivo nacional, nossa reportagem recorreu ao Instituto Brasileiro de Economia, da Fundação Getúlio Vargas (FGV IBRE).
Em conversa com Juliana Trece, analista responsável pela elaboração mensal do Monitor da Atividade Econômica (Monitor do PIB-FGV), abordamos questões como o impacto do atual endividamento das famílias brasileiras no desempenho do consumo no médio e longo prazo; a sustentabilidade de uma política de incentivo que compromete o teto de gastos como propulsora da atividade do consumo local; e as possíveis dificuldades trazidas por um cenário internacional instável. Confira a seguir a íntegra de mais esta entrevista exclusiva.
Novo Varejo – No início de setembro o IBGE divulgou um crescimento robusto do PIB brasileiro relativo ao primeiro semestre, com alta de 2,5%. Muito deste índice esteve atrelado ao forte desempenho do setor de serviços e um crescimento também no consumo em geral. A que você atribuiu este cenário positivo?
Juliana Trece – Realmente, a gente viu números positivos. Além do PIB, tivemos outras respostas importantes: o mercado de trabalho respondeu, com a taxa de desemprego dando uma reduzida; a inflação também não está mais em uma crescente tão alta. Tudo isso mostrou que nossa economia teve um impulso forte na primeira parte do ano. Como você bem destacou, porém, a gente consegue ver que o consumo e os serviços foram os principais fatores para este avanço. Então, quando olhamos principalmente a parte de serviços, vemos uma ligação com o período de normalização de atividades que ficaram muito tempo paradas durante a pandemia e que agora florescem a partir de uma demanda represada. Nisso se incluem transportes, bares, restaurantes etc. Já no campo do consumo, minha leitura é que os resultados têm sido reflexo dos diversos estímulos que o governo tem dado para a economia.
NV – O quanto deste bom momento da economia é sustentável?
JT – A sustentabilidade deste cenário para o segundo semestre e para o ano que vem traz algumas incertezas. Quando a gente fala de consumo, temos indicadores dentro desta própria categoria que indicam que a gente pode ter dificuldades ainda neste ano com relação à manutenção de uma atividade na mesma magnitude. Por exemplo, vimos com os dados do monitor no PIB que o consumo de serviços cresceu 7% no primeiro semestre do ano, enquanto o consumo de bens duráveis caiu 6,8%. Isso mostra que itens mais caros, que precisam, em geral, de financiamento acabam tendo dificuldade em um cenário de juros mais elevados. Dentro deste grupo estão os eletrodomésticos e os automóveis, itens que já têm passado por dificuldades neste momento bom da economia e que devem sofrer ainda mais com a desaceleração que a gente espera para o resto do ano e para 2023.
NV – Recentemente, a Confederação Nacional do Comércio revelou que 78% das famílias brasileiras estão endividadas e que a combinação do endividamento com a inadimplência atingiu o maior patamar em 12 anos. Este dado, que traz muita preocupação para o varejo, entra na sua conta na hora de projetar a desaceleração econômica em um horizonte próximo?
JT – Perfeito. Essa questão de o endividamento das famílias estar tão elevado é mais um fator que nos faz achar que a economia vai desacelerar. Isso mostra que boa parte da população está com parte da renda comprometida com financiamentos e com a inadimplência. São fatores que colocam a variável do consumo, que é o que tem segurado a economia no momento, em dúvida. Eu, sinceramente, acredito que o consumo ainda vai ter papel de destaque, mas vai diminuir progressivamente, pois não há muito como segurar da forma que está vindo. Quando a gente olha com detalhes os dados de endividamento, por exemplo, vemos que o cartão de crédito ainda lidera. Mas, aos poucos, ele tem perdido espaço para carnês, algo que indica que as famílias estão utilizando créditos para suprir necessidades mais básicas. Não é como se elas estivessem financiando um imóvel ou um automóvel.
NV – Setores como imobiliário e automotivo têm mostrado queda. Quais fatores da economia estão contribuindo para este momento ruim?
JT – Isso é fruto de um mercado com juros muito elevados, dentro do qual as famílias já estão com a renda comprometida e em um contexto de mercado de trabalho em que a queda do desemprego tem se ancorado majoritariamente em vagas com menor rendimento e de característica informal. O cenário é este: temos uma menor renda disponível tanto porque a inflação está elevada quanto porque parte da renda está ficando comprometida com dívidas. Isso vai tirando o fôlego do consumo destes bens.
NV – Você pode expandir um pouco este raciocínio sobre a dinâmica do endividamento? Ele funciona como aquele jargão popular “vender a janta para comer no almoço”?
JT – A dinâmica é exatamente essa: por um lado, a dívida acaba ajudando o consumo em um primeiro momento, mas no futuro o custo pode ser mais elevado do que se a desaceleração acontecesse por agora. Outro ponto que eu queria comentar é o do crédito consignado. Uma modalidade que vem sendo utilizada e que acaba ajudando as famílias a terem mais renda em um primeiro momento, mas que tende fazê-las se enrolar no médio e longo prazo.
NV – Alguns especialistas têm classificado o atual crescimento como ‘artificial’. Você compartilha desta ideia? Como as eleições podem impactar este horizonte de desaceleração inevitável?
JT – Em resumo, eu acho que esse crescimento é, sim, um pouco artificial à medida que a economia está sendo muito estimulada. Não tem como sobreviver por muito tempo. Não existe muito mais fôlego. Tínhamos a normalização, mas esse fôlego já acabou. O que tem segurado a economia são realmente os estímulos e isso acaba esbarrando bastante na questão fiscal. Então, independentemente de quem ganhar a eleição, o ano que vem será muito provavelmente um ano difícil. O Brasil até tem uma relação dívida-PIB estável, mas, dependendo do tempo em que estes estímulos provisórios se tornarem permanentes – ferindo o teto de gastos –, tudo isso pode fazer com que a trajetória da dívida cresça. Eu, realmente, vejo um cenário difícil. Sem contar que, adicionalmente, temos uma possibilidade de existir recessão global, algo que, se acontecer, vai acabar nos afetando.
NV – A que você atribui esta possibilidade de recessão global? Em quais áreas um cenário como este impactaria a economia brasileira mais fortemente?
JT – Essa perspectiva vem das seguidas elevação de juros voltadas a conter a inflação em algumas das principais economias do mundo. Temos que ter em mente: isso no Brasil, infelizmente, é até comum, já que historicamente lidamos com cenários de inflação muito alta. Mas, nos países de economias mais avançadas isso não é tão recorrente. Pelo contrário. Então, este ponto faz com que vislumbremos uma grande possibilidade de haver recessão global e diminuição do ritmo do comércio exterior. Em relação aos impactos por aqui, sugiro projetarmos um ambiente em que a China – nosso maior parceiro comercial – desacelere fortemente. Digo isso porque dependemos dos chineses tanto na parte de exportações quanto na de importações. Sendo assim, se a China desacelera de uma forma muito forte, ela irá impactar até mesmo alguns setores chave de nossa economia que têm passado à margem de algumas das nossas crises mais agudas, que são os segmentos mais ligados às commodities, como o agronegócio.